Inéditos

Contos, crônicas e novelas.

terça-feira, março 24, 2009

Antiga Declaração Que Surge Agora


Foram sublimes os dias passados. 
Impressionante como foram sublimes os dias passados.
Tão sublimes que a dúvida (esmola demais o santo desconfia) pede que os dias sejam passados a limpo.
Se a esmola foi demais a culpa, claro, há de ser de menos e os dias que sejam mesmo sublimes, mesmo que passados. 
Quem recebe esmola demais tem mesmo é que sorver da esmola e retribuir acreditando que foram mesmo sublimes os dias passados. 
Pode até ser que seja preciso dar esmolas em troca, mas nada disso vai fazer desmoronar a verdade dos sublimes dias passados. 
Porque foram mesmo sublimes e mais do que sublimes vieram da graçaa de alguém que quis, não se sabe porque, fazer deles sublimes dias passados.
Quem pode ser tão bom assim de dar uma esmola dessas tambem pode ser bom para entender que todo mundo na vida precisa de sublimes dias passados. 

Mas... Quem dá essas esmolas pode, no entanto, pedir em troca esmola maior que a dada e pedir que sejam sublimes, meu Deus do céu, sejam sublimes os dias futuros.

Se hão de ser.

Sublimes.

segunda-feira, janeiro 12, 2009

Jornalismo




1
A camionete trepida e faz meu corpo doer. Há um enjoo distante. Estamos, eu e o motorista, rodeados de barulho mecânico _molas e parafusos e placas de aço roçando-se em um pesadelo sonoro que adapta-se à estrada de terra, aos seus minúsculos desfiladeiros. Ele liga o rádio, mas o que ouvimos é mais ruído. Desligo o aparelho. Ao meu lado passa um pequeno rio, de águas marrons. Isso é um igarapé cheio, o motorista diz. Olho longamente, viro meu pescoço até onde posso e vejo o rio desaparecer por entre as janelas de vidro empoeiradas. Penso que a vegetação densa que percorre suas beiradas, plantas que mal pude observar, eram como fungos. Penso em fungos e em tecidos humanos, em pão e em minha infância. Na calma violência da vida natural, em como ela é irrevogável. Penso que o mundo é grande, e ainda assim apenas uma esfera imperfeita, e tenho vergonha e também orgulho desse pensamento. Olho para o motorista e imagino sua mãe. Olho a estrada e digo comigo: "Não sei onde estou". Me sinto um pouco mais tranquilo ao lembrar que ele, o motorista pago para me levar até a fazenda, sabe onde estamos. Há comigo uma bolsa de tecido jeans com alguns pontos descosturados e dentro dela acho que cinco canetas, dois blocos de anotação, um lápis, documentos e o todo o dinheiro que ainda restava. É o suficiente, imagino. Aqui o dinheiro não faz muito sentido. As pessoas aqui não fazem muito sentido. Você acha que está em um lugar, no que costuma chamar de um lugar, essa palavra genérica e ruim, mas isso não é um lugar como os que conhece. Você acha que está numa floresta, mas não é como nas fotos feitas do alto. Você vê a floresta como a floresta lhe vê. Se sente em um ambiente microcóspico, num momento tedioso da vida celular de um ser vivo cujo tamanho é uma mentira. Não existem seres desse tamanho. Ele não sobreviveria a si mesmo. Vejo um gavião pousado sobre uma cerca a nos observar. Acho exótico e vazio, desprovido de beleza. A sua beleza é só uma memória. Imagino que a estrada nunca vai acabar. Tiro um cigarro do bolso, acendo-o com uma mão e com a outra abro a janela. Penso e receio que uma nuvem de poeira vai inundar a camionete, mas são os barulhos mecânicos que me acertam. Soltando a fumaça pelo nariz, em dois filetes que se confundem no vento provocado pela velocidade, algo se transforma, me sinto importante. Sou um homem descobrindo a Amazônia. Olho para o motorista, observo meu rosto no retrovisor. Penso em filas de carregadores subindo montanhas no América do século XVI. Gritos, fogueiras, caldeirões, comida ruim compartilhada, surpresas, pequenos crimes esquecidos no trajeto. Algumas dezenas de mortes. Penso em negros carregando máquinas fotográficas na África de 1931. Penso em como ficaria de bigodes, e se aqueles desbravadores fumavam. Sim, todos fumavam, isso era praxe, um dado tão comum que beirava a irrelevância, concluo, incerto. Penso que não sei onde estou e que fumo para dar a impressão ao motorista de que sei onde estou. É um ford, uma máquina da indústria ford feita para enfrentar terrenos mal-acabados a que estamos. Imagino como algumas máquinas têm uma aparência animal _cobras, tigres, pequenos roedores_, e em como aqueles que as desenham têm em mente esses bichos quando se põem a desenhá-las. Estamos em um grande mamífero. Um urso, talvez. Eu sou mais um descobridor da Amazônia. Há vento no meu rosto, e passo a mão pela minha barba. Vivo o clichê da aventura, o clichê do anticlichê. Logo me sinto pequeno, estranho, desajustado. Mas desses sentimentos são feitos os heróis!, falo internamente. Não sei onde estou e, por um instante, creio que isso é nobre. Que perder-se obriga a pessoa a inventar saídas. Que essas saídas são sempre internas, nunca externas. Que ao inventar essas saídas ela descobre ou desenvolve qualidades que não tinha antes, e que isso é algo como uma evolução, e por isso são corajosos e melhores os homens que escolhem se perder. Essa frase espalha-se por meu corpo, rápida. Entendo que não tenho certeza dela _e se criarmos problemas falsos e saídas falsas, e se criarmos saídas que só servem para aqueles problemas em que nos metemos quando nos perdemos daquela vez, e para nenhum outro? E se não conseguirmos achar solução nenhuma? De quem serão esses problemas, quem os terá inventado? Posso inventar uma fechadura sem saber como é sua chave? Alguém saberá destrancá-la? E seu eu me enganar? E se os outros quiserem que eu me engane, e se os outros se aproveitarem da minha confusão auto-imposta em busca de algum tipo de nobilidade para me traírem, machucarem, roubarem? Só eu posso confundir a mim mesmo, penso. Agora, e se eu for o único perdido? E se ninguém mais quiser se perder? E se só os fracos precisarem da confusão para se fortalecer? Olho para o céu, azul-transparente, opaco, sinto cheiro de madeira queimada e imagino um avião, pequeno à distância, seu tamanho aumentando à medida que cai, rodando em espirais lentas e jogando pessoas e malas como gravetos sobre as copas das árvores que, penso, são tão altas quanto obeslicos de pedra. O avião pega fogo, há uma sequência de explosões em suas asas, ele mesmo se picota em pequenas peças flamejantes que chegam ao solo como meteoritos, gritos perdidos na velocidade da queda, mas para mim tudo isso ocorre em silêncio. O motorista olha à frente.

2
A viagem acabou. Chegamos à fazenda. Há uma porteira com lâminas de madeira farinhenta, sozinha no meio da estrada, fechada com um cadeado do tamanho do meu pulso branco. A porteira não se liga a coisa nenhuma. Acho que chegamos à fazenda, acho que a viagem acabou. Além da porteira a estrada continua. Há o barulho do inferno contido na mata cerrada, bilhões de coisas acontecendo à minha volta, sem que eu possa ver ou entender e tenho medo do segredo desse mundo exterior. Penso em prédios da minha cidade natal. Em diversos prédios sendo implodidos simultâneamente, e temo as consequências de uma explosão. Aqui fora, nada pode voltar atrás, falo comigo. E dentro, isso é possível? Há um tempo externo e um tempo interno, livre para refazer o que se quebrou? Penso em como estamos aqui fora sem nunca deixar de estarmos sós aqui dentro. Penso que não existe fora ou dentro. Penso que é necessário existir fora ou dentro, ou não teriam inventado essas palavras, essas idéias. Não sei nem como começar a articular um pensamento original sobre o mundo externo, o mundo interno e a relação entre eles. Desisto. Não sei se chegamos à fazenda, não sei se a viagem acabou. De dentro do carro, o motorista olha para o meu banco, e não para mim, que tenho as mãos dentro do bolso. Olho por longos segundos para ele, que não retribui o olhar. Como esse homem irá morrer?, imagino. Ao longe, do fundo da estrada, aproxima-se uma sombra. Sinto cheiro de óleo quente. A sombra, percebo, é a de um cavalo. Existe algo em cima do cavalo, mas não posso precisar o que é. Sei que é alguém, em nenhum momento passou pela minha cabeça que não fosse alguém. Mas não sei o que é. Penso na contradição desses dois pensamentos e logo a perco. O homem vem contra o sol e não acho que esteja me olhando. Imagino se sob a luz de meio-dia sou feio demais para ser suportado. Isso acontece. Penso sobre minha feiúra, sobre como cada uma das pessoas que um dia já me conheceram me decreveria a um terceiro. Penso também sobre minha beleza. O homem chega perto e percebo que ele é pequeno demais. Creio ser um anão. Por um momento, tudo parece fazer sentido. A fazenda é aqui, pergunto. Ele diz que é sim, que ele está na fazenda, mas que eu não estou na fazenda. Tem a voz fina, como a que se espera que um anão tenha. Ele tira o chapéu e posso ver que sofre de uma calvície completa. Não há nada a lhe cobrir a pele do crânio. Ainda não pude ver diretamente seu rosto. Imagino se ele está armado. Penso que estar armado pode ter diversas vantagens. Imagino que devo comprar uma arma, e andar com ela para onde for. E que com uma arma eu seria um desbravador por onde andasse, mesmo que nunca precisasse sacá-la. Sei que isso é mentira. Sinto que o anão é um desbravador. Ele não me pergunta quem eu sou nem de onde eu vim. Me joga uma chave e abro o cadeado. Ele me olha e entendo que devo lhe jogar as chaves de volta. Erro o alvo, a chave cai. Ele vira sua cabeça pequena e ridicularizada pelo grande chapéu em minha direção. Eu me apresso a correr para lhe alcançar a chave. Com a porteira aberta, dou um passo à frente. Agora você está na fazenda, ele diz. De qualquer maneira, sou um desbravador então, penso. Posso vislumbar seus olhos e não sinto nada. Ele não diz nada, e sai na direção oposta. Teria percebido que não sou daqui? Sim, é claro. Teria percebido que estou perdido? Sim, é claro. O anão tem irmãos?, me pergunto. Imagino se eles também seriam anões. Ele já sumiu na estrada de terra, mas os trotes do cavalo ainda ressoam, depois param. Volto olhar para o motorista, que acena para mim como se meu navio estivesse a partir. Rio sozinho. Imagino que por trás das árvores cerradas, talvez a poucos metros de mim, há um navio. É um iate turístico. Doze andares. Branco. Folhas mortas forram seu convés. Os vidros das escotilhas estão intactos, mas sujos. Em um dos lados do casco do navio tombado há um buraco recortado em formas erráticas, possível cicatriz de um torpedo. Penso em turismo em tempos de guerra. Dentro do buraco existem pessoas, imagino, e essas pessoas são os sobreviventes do terrível ataque, penso, e elas estão festejando algo, imagino, há música rudimentar e gritos largados entre barbas compridas, penso, e esse algo a ser festejado é o nascimento do mais novo náufrago, deliro, e tento com todas as minhas forças, por menos de um segundo, me colocar no papel desse bebê e compreender que julgamento ele faria do que se descortina perante seus sentidos. Não consigo. Lembro que estou na Amazônia, falo isso em voz alta e me sinto ridículo.

3
Paramos o carro na frente da sede da fazenda. Olho para o motorista, mas ele está entretido com suas malas no banco de trás. Quem esse homem quer ser?, penso. Olho para a sede e vejo uma casa típica de fazenda. Não há surpresa nenhuma. Não parece existir nada no gramado além da casa. É aqui mesmo? Imagino que talvez o motorista tenha errado o caminho. Que ele tenha mentido. Que ele tenha se perdido de propósito. Que ele nunca soubera como chegar. Que estamos em uma situação de emergência, mesmo tudo estando calmo e tranquilo. Que essa calma e tranquilidade indicam que apenas eu estou em uma situação de emergência. Imagino que fui traído por alguém que mal conhecia mas em quem depositei minha existência. Pondero que talvez não exista traição nesta situação, ou que eu sou o culpado por ela. Sinto que o motorista é um pobre coitado, mas me envergonho desse sentimento e tento negá-lo. Não consigo. Sinto que o pobre coitado sou eu, e renego esse pensamento. A casa é alta e tem um teto de telhas. A parede em volta da única porta tem marcas de mãos muito grandes, está emporcalhada. Saio e subo as escadas que levam à porta e grito oi. É um grito estranho e sem força. Não há resposta e por isso continuo entrando na casa. O primeiro cômodo é a cozinha e nela há dois fogões, um à gás e um a lenha. Os dois estão frios, posso perceber. Na mesa, há restos num prato e uma colher largada. A cozinha é enorme, um grande cubo repleto de azulejos marrons. Latas se acumulam em um quarto lateral que sei ser a dispensa. Tenho receio de continuar a andar, a desbravar. Não me sinto um desbravador. Paro e me percebo ser um completo estranho dentro da cozinha vazia de uma casa estranha. Há cheiro de cinzas e de esterco. Me sinto um imbecil. Imagino como deve ser nascer um imbecil patológico. Não imagino como um imbecil patológico se sente, imagino como eu me sentiria se pudesse me tornar um deles sem deixar de ser eu mesmo. Olho para a minha calça jeans e minha camiseta branca, e penso que, neste lugar, sou ainda mais incompreenssível. Um invasor em diversos sentidos. Bato palmas para chamar a atenção dos donos da casa e então alcanço o ápice do meu sentimento de estranheza e ridículo. Um jovem de jeans e camiseta branca entra em uma sede de fazenda gritando oi de forma esganiçada, para no primeiro cômodo e depois de ficar alguns segundos em silêncio, inerte, bate palmas. Não sou um desbravador, sou um cômico. Penso na relação entre as duas coisas. Em espanhóis usando roupas de metal e se coçando com picadas de mosquitos. Em um grupo de homens muito peludos no meio da neve gritando. Em um homem magro dentro de uma esfera de metal reforçado percebendo que alcançara o fundo do mar, olheiras roxas. Em gente pulando na lua. Rio sozinho, de mim e dessas pessoas. Sei que somos diferentes. Ouço barulhos de passos e um homem chega. Ele pergunta quem sou eu. Digo meu nome e afirmo ser jornalista. Ele me chama pelo nome e pergunta o que é um jornalista. Não sei o que dizer e imediatamente penso o quão óbvio é ficar sem palavras para responder algo tão óbvio. Imagino que poderia ter respondido com algo ainda mais óbvio, e enquanto imagino isso ficamos em silêncio. Penso sobre as frases que eu poderia ter dito e não disse, em como poderia ter sido retumbante e teatral e em como eu não fui nada disso. Continuamos em silêncio. Ele não me pressiona a responder. Espera uma resposta verdadeira, imagino. Espera que essa resposta dite como nossa relação será daqui para frente, penso. Ou só quer uma resposta verdadeira para que possa dar ele também sua versão verdadeira sobre a minha resposta, imagino. Ele quer ser completamente sincero comigo desde o início, penso. Ou quer extrair de mim toda a verdade. Digo a mim mesmo que os dois atos são em tudo diferentes. Logo percebo que a única verdade evidente é a minha fraqueza. Me revolto contra essa realidade e resolvo acender um cigarro dentro da cozinha. Tiro o maço lentamente do bolso da calça jeans e só depois pego o isqueiro. Ponho um cigarro no canto da boca. (Enquanto faço a cena não sou capaz de me reconhecer nela mas vou em frente mesmo assim.) Dou a primeira tragada e respondo que os jornalistas são pessoas que trabalham em jornais, e que ele deveria saber o que são jornais. Tusso e detesto, afinal, minha resposta. Sim, eu sei, diz. Então o senhor trabalha num jornal?, diz. Interessante, afirma. O homem me convida a tomar um café. Aceito. Sentamos na mesa e ele me serve com um bule de metal. Usa calça, cinto, camisa de botões e uma bota. É imenso, sua barriga estufa a camisa e cai sobre o cinto. Há algo de confortável nisso. Tem o rosto pequeno, muito branco, com uma papada. Seus traços são finos e seus olhos se assemelham a lâminas escurecidas enfiadas na gordura. Dentes perfeitos. Ele não parece com um porco, mas entendo que não serei incapaz de não pensar em um porco com ele perto. É jovem e sorri sem parar. Acho seu sorriso estranho, quando ele me olha por detrás do vapor que sai de sua chícara de café, mas não tenho medo. Ele se diverte ao me observar, penso. Então o senhor vende jornais, pergunta. Digo que não, que eu escrevo em jornais. Ele parece surpreso, como se não soubesse que os jornais são escritos. Vira o rosto, e esquecemos o assunto. Pergunto se é verdade que ele tem um circo dentro de sua fazenda. Se esse circo foi criado apenas para que ele pudesse assistir sozinho aos números, como me contaram. Abrupto, digo que esse é o motivo da viagem, que gostaria de ver esse circo e de conversar com os palhaços, mulheres barbadas e trapezistas que nele trabalham, juntar suas histórias em uma história maior e relatá-la a todos. Percebo que estou sendo direto. Que estou reafirmando minha condição de invasor. Sei que isso é importante. Tento manter meu olhar e minha expressão séria. Me sinto culpado por pressionar alguém que não me pressionou. Mas desculpo a mim mesmo dizendo internamente que sou um profissional. Ele diz que não. Não há circos na floresta amazônica, me fala. Eu sou um fazendeiro, não sou dono de nenhum circo, diz. Além do mais, há anos não saio daqui e há anos não recebo visitas, afirma. Fico confuso com a última frase, não sei onde encaixá-la dentro da lógica de seu pensamento. Mas sei que há uma relação verdadeira entre não ser o dono de um circo e ser um ermitão. Ermitões não são donos de circos. Donos de circos são viajantes que saem por aí comunicando aos outros o fascínio que todos devemos sentir pela mais variadas formas de aberração, penso. Mesmo assim, sinto que perdi algo do sentido e desconfio. Ele tem vergonha de seu circo, digo a mim mesmo, mudo. Ele não quer mostrar seu circo a um desconhecido, falo. Está ressentido pela maneira como o acuei. Perdi minha chance de ver seu circo pois fui arrogante e despreparado. Falou uma frase banal e sem sentido por não saber esconder bem seus sentimentos, penso. Sinto que essa tomada de consciência é importante para criar outra estratégia de aproximação, mas não passo da tomada de consciência e não consigo estruturar nenhuma nova maneira de arrancar dele informações sobre seu suposto circo. Relembro a possibilidade de termos tomado o caminho errado, de estarmos na fazenda errada, mas a descarto. Sei que estou no lugar correto. Me sinto perdido, não sei onde estou, repito a mim mesmo, mas essas palavras já não me confortam. Eu só vivo do que planto, ele diz, sorrindo, mas sou rico. Aqui é a minha propriedade, me fala. E é uma propriedade tão grande e tão cheia de coisas que não preciso sair daqui. Vivo sozinho, ele diz. Penso em porque ele usou a expressão coisas. Falo sobre o anão que viera abrir a porteira. Ele diz que sua fazenda não tem porteiras. Não haveria motivo nenhum em ter uma porteira, diz, confiante. Seu tom de voz é calmo e terno. Essa é a minha propriedade, tudo aqui me pertence, sou responsável por tudo o que acontece nessa fazenda, ele diz. O que poderia querer fugir, pergunta. De resto, afirma, sou aberto a quem quiser me conhecer. Não comenta o anão. Começo a me sentir aflito. Não há circo. Não há reportagem. E as promessas feitas na empresa? E o dinheiro gasto com meu salário, com o avião, com o carro e o motorista? Imediatamente, me coloco como um mentiroso, um estelionatário da profissão. Prevejo a desgraça e o ocaso, e sei estar exagerando, o que não afasta a angústia. Penso que o motorista sumiu. Não me incomodo com isso, e entendo que é estranho não me incomodar com isso. Mas, e se eu tivesse mesmo um circo, por que você gostaria de falar com os palhaços, pergunta. O que eles teriam a lhe dizer? Pois é, respondo, distante. Olho pela janela e imagino minha família, quinze gerações da minha família, todos juntos, digamos que todos com 26 anos, com a idade que tenho hoje, entrando na casa ao mesmo tempo. Eles me acharam, respiraria aliviado. Centenas de pessoas me procurando. Então cairia em mim: eles me acharam! Tentaria me esconder, sairia correndo. Vejo eu mesmo sendo perseguido por um batalhão de antepassados por uma estrada de terra cercada de mata viva e pulsante. Vamos, ele me diz, lhe mostro a fazenda. Concordo.

4
O proprietário vai à frente. Sigo seus passos calculadamente. Passamos pela camionete e percebo que o motorista está no banco de trás, deitado. Não tenho certeza se dorme. Temo que tenha me olhado passando, que tenha achado que o ignorei de propósito, que tenha achado que me envergonho dele e de sua presença comigo na fazenda. Por um momento, crio a certeza de que vi um de seus olhos abertos. Temo seu julgamento, seu futuro desprezo por mim. O esfriamento de uma relação já impessoal. Se dorme, com o que sonha, pergunto a mim mesmo. Seguimos a pé até uma outra casa, deteriorada, sem portas ou janelas, apenas buracos. O proprietário diz que essa casa também é dele, mas não explica para que ela serve. Continuamos em frente. A sede, olho para trás, já está pequena, e continuamos pisando em grama verde e fofa. O proprietário tem um passo decidido e sadio. Por vezes, vira o rosto e me dá um sorriso largo. Acredito ser verdadeiro. Chegamos até o que me parece um armazém. É um galpão gigantesco, e dentro há um piso superior feito com madeira rústica. Tudo velho, como se não fosse usado há décadas. Sinto que não é usado há décadas. Não entramos. Apenas espreito. Ele me diz que a construção também é dele. Esse é o meu mundo, afirma. Da sede para a casinha, da casinha para o celeiro, fala. O que o senhor planta aqui, me atrevo a perguntar. Penso que não deveria perguntar. Que se ele quisesse dizer já teria dito. Ouço a minha frase suspensa no ar durante vários segundos, e ele não a responde. Talvez não tenha ouvido, afirmo internamente. Talvez esteja a fingir que não ouviu. Talvez tenha ouvido, mas não tenha certeza sobre a minha dúvida. Talvez o isolamento o tenha feito um pouco surdo. Talvez ele tenha se esquecido em parte como ouvir o próprio idioma, depois de tanto tempo sem receber visitas, digo a mim mesmo. Prefiro não repetir a pergunta. Diante do armazém, o proprietário para na minha frente e me olha com a boca branca de dentes perfeitos. Você acha que terminou, pergunta. Não, responde a si mesmo. Há muito, muito mais a ser visto. Sinto um início de tédio. Penso que aceitei o passeio como educação, dado que não poderei escrever uma reportagem. E que agora estou enredado em uma situação que não planejei. Estou perdendo o controle, imagino. Penso que a viagem já está durando demais. Que sou fraco para fazer o que deve ser feito e simplesmente dar de ombros à fazenda do proprietário orgulhoso. Sinto que quero ir embora, mas que já não posso ir embora. Que sou educado demais para isso. Medroso demais para isso. Adaptável demais. Ou seria culpa do homem?, imagino rapidamente. Ou é este homem que continua a me dar sorrisos para sanar sua solidão inimaginável, sorrisos dos quais não consigo me desvencilhar, pergunto. Por trás dessa auto-confiança que irradia há um temor incontrolável de ser abandonado pela única pessoa com quem fala há anos? É isso o que acontece com alguém que passa tanto tempo sem se comunicar, sem tocar ou ver outra pessoa? E suas memórias, imagino. Quão profunda se torna a relação com os vestígios mentais dos outros? Ele manipula objetos para representarem essas lembranças? Faz esculturas, pinta quadros e escreve livros e dá às suas obras os nomes e as características das pessoas que conheceu? Depois, as destrói, queima e perfura diante da incompetência de si mesmo em recriar o antigo mundo? E, sem obras ou memórias, um dia o ermitão se esquece de como agir? Vira uma personalidade oca, morta, inexistente? Ou não, ele se torna plano, sendo completamente amistoso ou completamente grosseiro? Nada disso me parece verossímil, não acredito na qualidade das minhas dúvidas. Algo ruim corre pelo meu corpo, como se minha falha mental se espraiasse pelos membros. Olhando para sua calça, de repente me assusto: se o proprietário não vê ninguém, como tem roupas novas? Retomo minhas desconfianças. Imagino que ele havia criado a fantasia para entreter a mim, o invasor. Que é um homem cheio de bom humor, um aventureiro, um amante das pequenas mentiras e de suas diversões. Então ele pode sim ter um circo, penso. Me sinto aliviado, por um breve segundo. Ah, sim, digo a mim mesmo, tudo volta a fazer sentido,  imagino. Quem sabe esse nosso passeio já não faz parte de suas atrações? O Desbravador Desavisado. Quem sabe não há um pequeno público nos seguindo escondido, nos observando por trás do armazém, dando risos abafados? Que bela reportagem tenho em mãos, penso. Ou há algo de pior nessa farsa?, imagino, como um reflexo. Algo que não se relaciona com momentos de alegria circense nem com boas intenções disfarçadas de mentiras. Talvez estejamos completamente sós neste descampado no meio da floresta. Ah, digo comigo, estou sozinho com esse homem imenso andando por terras que nunca sonhei existirem! Há como uma nebulosa de indagações em minha cabeça. Me sinto zonzo e prevejo um enjoo. Quero saber, subitamente, o motivo de sua solidão. Essa é a resposta de que preciso para sanar minhas dúvidas. Se souber porque o proprietário resolveu se isolar, poderei concluir quem ele é. Talvez intuir a verdade sobre o que vivo neste momento. Mas como descobrir isso se não fui capaz nem sequer de insistir em uma dúvida muito mais prosaica, quase polida? Chegamos a algo que se parece com um cercado para animais. Não há animais nele. O homem diz que aquilo, na verdade um círculo de cerca com arame enferrujado, é dele. Isso é tudo meu, ele diz. Me sinto incomodado com seu orgulho, pela primeira vez. Com a pobreza e a ignorância de seu discurso. Tenho uma pulsão de vomitar impropérios, palavrões, de amaldiçoar sua alma e carne e de dizer que tudo o que me mostrou não passa de ruínas inúteis. De chamar ele e sua possível família de uma vara de porcos. Não faço isso. Balanço a cabeça positivamente. Ele acena com o braço e continuamos andando. Já não sei onde está o armazém. Me imagino amarelando sob o sol. Agora atravessamos um pequeno bosque do gramado. Olho para as árvores e não consigo ver o céu. Penso que o céu é verde. Que isso é bonito de se pensar, mas que é um pensamento estéril. Olho para os galhos e vejo macacos. Paro. Dezenas, centenas. Se coçando e alisando os pelos. Todos parecem me encarar. Sinto receio. Têm a expressão séria e se assemelham a homens pensando em problemas insolúveis. Impossível distinguir seus sexos. São pequenos e cinzas. Alguns têm laivos de preto na cabeça. Sei que desconheço tudo relacionado a macacos, mas enquanto passamos pelo bosque acredito entendê-los. Me sinto ridículo por estar vendos macacos na Amazônia. Os meus macacos são dóceis, diz o homem. Cercado de macacos, imaginando que eles me observam e formulam julgamentos indecifráveis sobre mim, penso no anão que me deu a chave do cadeado da porteira. Por onde anda o anão? Gostaria que o anão chegasse em seu cavalo, imagino. Me sinto obsceno pensando que preciso do anão para me salvar, tento ignorar esse pensamento, mas é inútil. Percebo que, andando agora em direção ao que parece um avião monomotor com pintura descascada, só consigo pensar no anão. Imagino a presença do motorista, mas essa imagem só me faz pior. O anão é o verdadeiro fazendeiro? Essa confiança abrupta nele é uma prova inconsciente disso? E esse seria um impostor? Ou não se trata de confiança o que sinto? Ele me olha e já sei o que dirá: que o avião é dele. Essa máquina é minha também, ele diz. Tento desviar os olhos. Ele senta em um banco sem qualquer revestimento, dentro da aeronave, e pede para que eu entre também. Me sinto incapaz de dizer não, de novo. Tudo o que eu quero é não subir nesse monomotor, penso, mas já não posso deixar de entrar no monomotor do proprietário. Perdi a oportunidade de ir embora, penso. Já ao seu lado, ele me dá o que diz ser um fone. É para poder lhe falar sobre minhas propriedades, ele diz. Olho para os lados e não vejo nada parecido com uma pista de pouso. Em silêncio, sorrindo, com uma de suas pernas gordas encostadas em mim, o homem dá a partida. Os barulhos mecânicos estão de volta. É uma massa sonora que quase posso tocar. Ela me estatela no banco, pressiona meu peito, gruda minhas pernas ao que imagino se chamar fuselagem. Então começamos a taxiar pelo gramado, em alta velocidade. Andamos pelo mesmo enorme gramado do qual nunca saímos, e o homem repete a cada dez ou vinte segundos a mesma frase sobre tudo o que eu estava vendo ser dele. Estamos usando o pequeno avião como um carro, penso, e julgo a situação absurda. Antes de começar a articular esse pensamento, a pista, de terra, aparece. O homem diz: é agora. Os barulhos aumentam e vejo as asas tremerem e levantamos vôo. Percebo que minha porta está entreaberta. O proprietário sorri e me dá um sinal de OK. Sinto que ele está muito feliz, mas não sou capaz de ter nenhuma certeza sobre o homem. Quando fecho os olhos, com medo de ver o que deixamos abaixo, o proprietário me vem à cabeça como uma silhueta de fumaça. Depois de algum tempo, acreditando que já estamos no alto, abro os olhos e ele me observa. É muita coisa, não, ele me pergunta. Levanto meu dedão. O que há abaixo é a velha floresta. Ela é dele. Passamos por um rio azul-escuro. É dele. Uma cachoeira distante. Montes de pedras. Clareiras maiores do que bairros. Nenhuma pessoa. O mundo selvagem em miniatura. Tudo isso tem dono, ele diz. Cada folha, cada bicho, cada pedaçinho de madeira, pedra ou ser vivo é meu. Sou um homem rico, afirma, pela voz deformada do fone. Imagino que não seja ele mais quem me fala. Não consigo ver sua boca se mexer, mas as frases chegam mesmo assim. Ao longe, a uma distância que sou incapaz de mensurar, noto que nuvens cinzas em forma de bolhas se aproximam. Acompanho seus movimentos. São quatro bolhas que correm uma em direção à outra. Escurecem conforme suas velocidades aumentam. São bolhas de bordas irregulares, cujo interior, cheio de ar estranho, não para de se convulsionar. São cinzas, mas também laranjas e vermelhas. Tons que nunca antes havia visto. Como o pôr-do-sol em outro planeta. Dentro de cada uma, raios surgem, tal troncos de árvores queimando, e desaparecem aos meus olhos. Quando somem, deixam um rastro de luz em minha memória. Que tipo de força as une, indago. Estou desesperado com o que vejo. Cada uma, sinto, carrega algo importante, enorme, grandioso, uma parte de deus, e ainda assim elas se aproximam. O que acontecerá? Posso ver perfeitamente o movimento das nuvens, grudo meus olhos na pequena janela do monomotor e, acertado em cheio pelo enjoo, vejo que o encontro acontece em silêncio. O resultado é apenas uma grande bolha, negra e tremulante. Tento ouvir qualquer tipo de ruído, um trovão avassalador e primitivo, mas nada chega. Já anoitece. O proprietário percebe o que olho e diz: Elas também são minhas. Começa a chover. Ele não diz, mas sinto que prepara nossa descida.

5
O avião aterriza e o homem parece ainda mais contente. Pronto, me diz, quase íntimo, agora você conhece uma parte da minha fazenda. Falta mais, pergunto internamente. Quanto mais? Me sinto quase surpreso. O tipo de surpresa que eu esperava sentir. De volta ao gramado, ele se aproxima e fica claro o quanto é mais alto que eu. Me puxa pelos ombros e dá uma espécie de abraço lateral.  Sinto vontade de vomitar. Sorrio para ele e ele sorri para mim. Seu sorriso parece aumentar a cada vez que olho. Quando você vier de novo, me avise que poderemos conhecer o resto. Mas seria preciso muito mais tempo, afirma, muito mais tempo. Imagino se o homem é um demente. Se é esse o motivo de seu isolamento. Talvez o circo de que me falaram fosse um hospício, penso. Talvez ele seja o último interno. Uma fazenda de loucos que tentaram sobreviver sozinhos, à margem da civilização. Mas que falharam e morreram um a um. De fome, câncer, infecções, tristeza e felicidade, pessoas que acreditaram nas próprias doenças mas que delas não conseguiram escapar. Dezenas de suicídios em cadeia, todos os dias enterros nesse mesmo gramado onde agora pisamos, em direção à sede. Vejo pequenos montes de terra nua e penso se ali jazem os verdadeiros amigos do proprietário. Imagino o personagem que se veste de napoleão, o que fala com o nada, o que não pará de gargalhar, o que vê o que ninguém mais vê, o que passa dias observando um mesmo ponto na parede, o que mimetiza os visitantes. Qual seria ele? Me envergonho desse amontoado de idéias prontas e simplificadas das quais não consigo fugir. Digo a mim mesmo que não conheço nada sobre a loucura. Tento alcançá-lo, mas ele ainda vai à frente. Percebo que seus passos são muito grandes, que mesmo quando acelero não consigo manter o mesmo ritmo. Ele anda e olha para o alto. Há uma mistura de vermelho e de roxo no céu. Esse é o anoitecer amazônico, diz o proprietário. Estou desiludido com a beleza do lugar. Não presto atenção. Quando chegarmos à sede, já será noite, afirma. O melhor é você ir embora apenas de manhã. Sua frase me aterroriza. Ah, penso, o que farei durante uma noite inteira aqui? Do que falaremos? Passaremos horas em completo silêncio? O que se passa neste mundo quando o sol se põe? Ele me servirá um jantar? Me dará uma cama? Terei de dormir no mesmo quarto? E como ele dorme? Veste um pijama? Ronca? Tem sonambulismo? Tenho de dizer que devo ir embora agora mesmo, penso. Devo ser direto e lhe explicar que fiz compromissos com minha família, com a minha realidade. Ele para e me espera. Então me dá o mesmo tipo de abraço, lateral. Me espreme contra seu corpo. Diz: Vamos, não gosto de andar aqui à noite. E fazemos todo o trajeto de volta grudados. Por vezes ele quase me arrasta. Me sinto esgotado. Nunca um desbravador. Ainda mais fraco do que quando iniciamos o passeio. Súbitamente, a angústia profissional me atinge de novo. Produzi um fracasso, penso. Não posso nem sequer telefonar para o jornal. Seria aniquilado pela vergonha. Melhor manter meu erro como um segredo. Antes de voltar, arranjarei uma mentira. Enganarei também o motorista. Ninguém saberá o que se passou durante esse nosso passeio. Posso escrever um texto falso, mentiroso. Ninguém nunca me desmentiria. Posso criar, penso. Mas no mesmo momento em que imagino a mim mesmo criando essa peça de ficção, sei que não serei capaz de mentir. Primeiro, acredito se tratar de um problema moral. Depois, sei se tratar de algo relacionado ao homem. Como poderei escrever sobre seu mundo, uma mentira que seja?, penso. Sinto que o que ele me apresentou não eram apenas objetos e lugares. Eram seus objetos e lugares. Subitamente, acredito nele. Poderia morar toda a minha vida aqui, imagino, e passar toda a minha vida dormindo nessa casa e indo até o armazém e voando naquele monomotor, e eles nunca seriam meus, nem mesmo a memória deles, penso. É estranho. Não acredito no que sinto acreditar. Mas é um sentimento claro em minha cabeça, como uma paixão momentânea. Apenas por exercício, tento lembrar de algum detalhe do que havia visto, e vislumbro apenas um vazio. Me angustio. Eu vi tudo aquilo? Quem poderá atestar? O louco? Imagino se o que sinto se relaciona aos sorrisos do proprietário. Ou à frase repetida indefinidamente apenas para meus ouvidos. Nenhuma das possibilidades me parece possível. Penso que inventei essas possibilidades apenas porque elas são simples, mas que a verdade sobre essa redoma entre o que que me foi apresentado e minha consciência é instransponível. É minha, a despeito de mim. Não é minha. Nunca será minha. É minha como os outros são meus. Não é minha. Penso que tudo o que ele me mostrou não eram coisas, mas ele mesmo. Relembro cada uma das suas palavras sobre sua propriedade. Rio sozinho com o artificialismo desse meu pensamento. Depois me calo. Minhas vísceras parecem costuradas umas às outras. Estamos de volta. Abraçado ao homem, sinto que estou sendo sugado por seu corpo, que não tenho forças para resistir e sei que terei de passar a noite aqui. O motorista espera sentado na escada. A camionete foi mudada de lugar, suponho, porque não está mais onde estava. Não suporto olhar para o motorista. Sei que ele me observa com curiosidade. Quer me fazer perguntas. O evito o máximo possível mesmo um contato visual. Parecerei estranho, mas já não me importo. O que terá feito em nossa ausência?, imagino. Ele e o proprietário se comprimentam efusivamente. Parecem velhos conhecidos. Sei que não são. Começam a conversar e me distancio. Falam sobre gado. O motorista conta suas experiências. O homem as ouve, e faz perguntas. Diversas perguntas. Entretêm o motorista com suas dúvidas sobre as histórias que ouve. Me sinto aliviado. Durante o jantar, a conversa continua. O motorista fala sobre bois e vacas, e o proprietário faz perguntas sobre esses bois e essas vacas. Me mantenho em silêncio. Ouço o que dizem, mas meu enjoo é forte demais para que possa entender sequer uma parte das histórias. Comem coisas enlatadas. Não falam sobre propriedades. Eu prefiro o jejum. Digo que acho melhor dormir e vou até o quarto onde todos dormiremos. Percebo que a casa tem apenas este quarto. Percebo o quão descuidado é seu estado. Paredes imundas, velhas lamparinas e aranhas por toda a parte. Há a lembrança de todas as minhas dúvidas, mas meu mal-estar físico é grande demais para que eu suporte insistir nelas. Seja lá o que for, digo. A noite, os roncos, o sonambulismo. Quero apenas me deitar. Me deito em uma das três camas de solteiro e sonho que durmo logo que me deito, mas que acordo quando alguém chega no quarto. Percebo ser o motorista, que deita-se no escuro e que começa a roncar, sonho. Não consigo mais dormir, o enjoo torna minha vida uma pequena morte, suo frio, meus músculos tremem, sonho. Desperto, me pergunto onde está o proprietário, sonho. O que faz, por onde anda, com quem está, sonho. Pensa em mim, pergunto, sonho. As questões saturam minha cabeça, pioram o mal-estar e sinto que tenho que levantar, sonho. Com dificuldade de andar e de respirar, sentindo meus pulmões arderem e arfando pesadamente, dando longas inspiradas, buscando o ar desesperadamente, chego à cozinha vazia e penso que devo sair da casa para melhorar, sonho. Sei então que só saindo da casa poderei me sentir melhor, sonho. É uma certeza completa sobre a qual não me interrogo, sonho. Ao sair, vejo a floresta amazônica como um muro negro e imagino que minha cura está à frente, no gramado, ainda mais longe, sonho. Caio, mas continuo, me arrastanto, agora com dores insuportáveis nas entranhas, sonho. Me arrasto durante tempo demais, sonho. Enquanto me arrasto, percebo estar indo em direção ao armazém, sonho. De dentro do armazém, vêm luzes e gritos agudos, sonho. Vomito um líquido vermelho, sonho, mas consigo chegar até a entrada, sonho. Lá dentro, há centenas de macacos, pequenos como os que eu vira no bosque, e dois deles estão montados em cavalos musculosos e seguram rédeas e pedaços de ferro e parecem duelar, enquanto outros, no andar superior, gritam e jogam frutas nos cavaleiros, que se vestem com roupas coloridas e tem narizes pintados de vermelhos e também gritam e rodam seus cajados de aço no ar, malucos e selvagens mas também ridículos, e sentado em uma das bordas do círculo formado em torno dos duelistas há um homem, com macacos pendurados em seus ombros e braços, alisando um deles de cada vez, batendo palmas e gargalhando, e pedindo mais e pegando frutas e também as jogando nos cavaleiros, que parecem ainda mais enfurecidos com o ridículo pelo qual passam e que por isso investem um contra o outro em alta velocidade e no duelo um dos macacos cai e não se levanta e o alvoroço é ainda maior e o homem se levanta e percebo que há um silêncio e que os macacos se entreolham e voltam-se para o homem, que começa a olhar em volta até parar seus olhos sobre os meus e então a gritaria recomeça. Há muita alegria. Me sinto alegre também e começo a chorar. Não sinto tristeza nem alegria. Não é nostalgia nem medo. Sou uma grande confusão, e choro convulsivamente. O homem se aproxima, não sei se tratar do proprietário, do anão ou do motorista, me estende a mão e entro no armazém.
 

sábado, dezembro 27, 2008

Dr. Rodenti

Estávamos na sala, meu abdomen encostado no parapeito da janela, olhando os carros e um grande outdoor de calçados de couro, e meus dois amigos sentados no sofá, com o doutor Rodenti encravado na almofada do meio. Não há nada sobre o mal que não esteja nos meus livros, dizia, enquanto espalmava as mãos, friccionando até extrair algum suor, se há um assunto do qual eu 
conheça absolutamente tudo, esse assunto, minha gente, é o mal. O encarei, sozinho, sem a ajuda de nadie. O sotaque era argentino, outros diziam uruguaio, espanhol, venezuelano. Pouco se sabia no Conjunto Habitacional Circular sobre sotaques. Havia quem já houvesse estado na tríplice fronteira, comprando computadores e porta-retratos eletrônicos em Ciudad Del Este, mas isso não signficava nada em termos de aprendizado sobre as diferentes pronúncias do castelhano. Eu, o pequeno Ivan Cascudo e John Pablo Escobar, cujo rosto era ameaçado por uma genética de criatividade espantosa, cagávamos para a origem do velho. Tinhámos não mais do que 18 anos. Da minha parte, gostava de som automotivo. Cascudinho era um punheteiro doentio. Pablo, até onde eu sabia, não gostava de nada em especial, afora vagar conosco, calado, fumando sem parar seus sky's superlongos, sempre de boné, berma e chinelo de dedo. Quando percebi que o mal não era só uma palavra, rapazes, tinha uma idade aproximada à de vocês, e eu vi o mal, como estou vendo cada um de vocês aqui, e eu juro que ele era simpático. Rodenti vivia sozinho, mais um solitário ali, um dia farmacêutico, um dia casado, então abandonado por mulheres e filhos e toda a família. Ou fora ele que os abandonou, não era certo. O homem nunca fizera questão de solucionar a dúvida que rolava, vagarosamente, entre os condôminos. Às vezes uma mulher jovem aparecia e, dizem, subia até seu apartamento, mas o doutor não a deixava entrar e tinham uma conversa quase inaudível pelos vãos da porta. Não se sabia sobre o que falavam. Eu mesmo nunca presenciei a cena. Comentava-se que era uma amante, uma sobrinha, uma cobradora. Não acreditava. No apartamento havia muitos livros, sim, é verdade. Mas nunca pudemos ver, nem ele nos mostrou, algum dos que dizia ter escrito. Eu conheço o mal por que o mal, essa pessoa, virou meu amigo, frequentou minha casa, me contou sua história e ouviu a minha história, gente, e fiz muitas perguntas a ele, e ele respondeu a todas minhas perguntas com cuidado quase excessivo, falava. Era a terceira ou quarta vez que vínhamos ao doutor. Ele nos dava comida congelada e servia licor de laranja, que guardava em uma garrafa embrulhada em papel alumínio. Não havia taças, e usávamos o mesmo copo de plástico grosseiro. Ele gostava de nos ver beber assim, juntos, como irmãos, e ria. Vínhamos os três por que eu, Ivan e John não sabíamos viver um sem o outro. Não sei dizer o motivo de termos nos tornado amigos. Não acho que tenha motivo nenhum, se é que me entende. Só éramos vizinhos desde a infância. O John eu conheço da época em que a gente passava a madrugada toda sentado no chão do meu quarto jogando mario bros. Depois que roubaram o video-game, ele parou de falar comigo. Só voltou quando sua feiúra começou a aparecer, quando sua estranheza física se tornou tão aparente que as pessoas simplesmente se afastaram. Ainda me pergunto: por que ele se voltou a mim? A cara dele tinha todos os problemas possíveis. Para começar, não havia queixo. Sua boca, uma coisinha pequena, um ânus rosado, quase que encerrava o rosto, aberta e obscena, como a de um deficiente mental. Às vezes, vou dizer, dependendo do ângulo com que eu olhava, se estávamos debaixo de um dos postes do playground, com a luz amarela criando sombras estranhas, parecia que sua boca estava no pescoço. Só imagine uma boca no pescoço, e você vai começar a entender do que eu estou falando. Mas posso fazer uma lista: nariz gordo, com narinas muito abertas, uma testa curta demais, com cabelo ralo tal pêlo de rato, crescendo em tufos já em extinção, olhos caídos e grandes que nunca abriam ou fechavam no mesmo momento, que estavam sempre e descompasso, mãças do rosto afundadas. Cobrindo tudo, a pele avermelhada, descamando por inteira e diariamente com a ação de um produto anti-acne que ele usava desde os 13. Eu achava engraçado, começava a rir e não explicava ao John por que estava rindo, e acho que isso me tornava imune à sua feiúra. Como era o mal, meninos, vocês poderiam me perguntar, como ele se parecia? Era uma criança e tinha aquele sorriso cálido que as crianças confiantes têm, percebem?, disse o doutor Rodenti, e ele vivia gargalhando sozinho, mesmo quando não estava brincando. Ele gargalhava muito alto, súbito, como se estivesse pregando em todos uma surpresa. O Cascudinho, o pequeno Ivan, o Ivanzinho ou Ivanzico, tinha parado de crescer lá pelos 16 anos. Tomava hormônios com a esperança de que um dia ao menos tivesse barba, coitado, mas o pouco desenvolvimento nunca o afetou. Era um moleque virado, teve seus momentos com a galera do bloco 4, tipos como o Caroço ou o DVD, que não demoraram a ganhar fama de ladrões e craqueiros, que viveram seus momentos de glória na metade da adolescência e que já estavam presos ou mortos ou crentes, de qualquer maneira apaziguados, e o Cascudo era tão esperto que anteviu esse apaziguamento forçado que sofreria e, da noite para o dia, voltou a interfonar lá em casa para fumar um baseado tranquilo na Casa da Árvore. Falávamos de mulher e de punheta. Cuspindo e fanho como era, metralhava sem parar, já com a brisa na cabeça, técnicas e experiências da masturbação frenética que praticava. Eram ao menos três por dia, dizia. Ele gostava de bater punheta na mesa de jantar, na aula de física, quando era escalado de quarto zagueiro no campo semi-profissional da E.E. Ulisses Lima, olhando ou pensando na irmã, mãe, tia, colega de sala, em bocetas de vacas e de celebridades internacionais. Ele batia punheta com as duas mãos, com dois dedos, com um dedo enfiado no cu, segurando o saco, apertando bem forte os próprios testículos, tinha até já tentado o uso de frutas. Também me contava que tinha um tesão especial com o destino de seu sêmem. Carteiras escolares, cortinas da sala de aula, calcinhas de parentes, mouses, latas de refrigerante fechadas, sanduíches, maçanetas. Todos empesteados pelos espermatozóides agonizantes. Um dia o Cascudo teve uma coleção de revistas e filmes pornográficos que o tornaram popular, mas hoje estava tudo no computador, na internet. A coleção, teve a incrível idéia de doar para a biblioteca da escola _que, ainda mais incrível, aceitou. O que eu respondia a esses relatos banais da mais pura intimidade? Eu falava de som automotivo, do que é possível fazer com subwoofers e potências e caixas e graves, da relação entre cada uma dessas peças, de que tipo de música é aceitável para cada modelo, lhe explicava a destruição provocada por um sony e minhas teorias sobre os pioneers e sua altíssima fidelidade à midia, falava sobre mídia e encontros de sons automotivos, sobre as gostosas de biquini desses encontros e das explosões de pára-brisas, da força das ondas. Dávamos risadas, os olhos trincados, e enrolávamos outro. Meninos, vocês conhecem a bíblia? Nem eu. Mas lá está escrito, em algum lugar, que o mal não é o agente da desgraça, e sim que ele é o facilitador da desgraça. Ele a torna possível, sem nunca precisar operá-la. Eu sei disso mesmo sem ler a bíblia por que eu conheci o mal, percebem, minha gente? O menino, essa criança da qual estou falando, ele fazia com que o mal acontecesse, ele tentava os outros e conseguia que esses outros praticassem o mal. Ele, com uma mãe que claramente estava ali apenas para agenciar seu próprio filho, para facilitar a entrada do Facilitador na vida dos outros, mostrava-se só uma criança no início, uma criança tão inteligente que alguém poderia confundi-la com um prodígio, muito curiosa, falante, que contava aos outros detalhes de suas experiências infantis e abria os ouvidos com muita graça para ouvir as experiências dos outros também, percebem? Um menino magnético, sabem do que falo? E aos poucos ele se mostrava. Foi a punheta de Ivan que nos levou ao doutor Rodenti. Sentados sobre o muro baixo do grande estacionamento, Ivanzico disse que o velho tinha uma antiga coleção de vinis pornôs. O que eram vinis pornôs, eu e Johnny perguntamos. Ah, falou Ivan, são umas mulheres que ficam dizendo o que tão fazendo, tá ligado, "Feu folho para seu pênis efeto e o foco com a ponta do meu fedo", haha, falou o Ivan, o cara mais fanho que já conheci, imitando como seria a voz da narradora. "Eu firo seu pênis da fermuda e o coloco in-fei-ro na boca", hahaha. Rimos também. Aquilo era engraçado. Com ele dizendo ficava mais engraçado ainda. Não conseguíamos parar de rir. Perguntei: quem se excita com isso, e os dois ficaram calados. Logo Cascudinho disse que havia pego dois desses discos. Ao devolvê-los, o doutor não queria que ele fosse embora. O doutor queria falar, disse Ivan. E falou durante ao menos duas horas a um Ivan que, na verdade, queria é voar dali, quem sabe chegar em casa e se trancar no banheiro. Mas foi difícil escapar, e ao final desse tempo, em que, segundo disse o Casca, o velho contou apenas histórias estranhas que estavam em seus supostos livros, Rodenti disse obrigado e lhe pagou cinquenta pratas. Dinheiro. Por ouvir alguém falar. Com direito a licor de laranja e lasagna de molho branco. Casca nos disse, sentado no muro, que voltou algumas vezes para ouvir o gringo delirar e ganhar cinquenta pratas e que, na última delas, ele lhe perguntou se, por acaso, o Ivan não conheceria alguns amigos que também gostassem de ouvir histórias de um farmacêutico aposentado. E fomos, é claro, porque tínhamos 18 anos e nada na cabeça. O que eu conto aqui é a boa e antiga coisa do demônio, falou o doutor. Sobre suas faces. Por que seria diferente? As pessoas enjoaram desse jeito antigo de falar do mal. Elas querem que ele tenha rostos desconhecidos, querem que ele seja assim, comum, qualquer, querem que o mal seja portanto um mistério. Mas o mal não é misterioso. Quando ele está perto, você sabe. E quando ele lhe tenta, você pensa: "O mal está me tentando", e isso não impede que a gente caia na tentação, rapazes. Por que se tem uma coisa verdadeira sobre o mal é que ele não pode ser detido com a cabeça. Estava com meu abdomen ainda encostado no parapeito da janela, e observava duas pessoas, duas mulheres, acho, que entravam num monza marrom, havia uma senhora gorda correndo e cachorros se cheirando timidamente. Uma cena na periferia de São Paulo, minha consciência perdida no reino da banalidade. Pois então, essa criança espantosa, que com a mãe mudou-se para o lado de casa, e que passou a frequentar minha casa, que era ainda a casa da minha própria mãe, ela e suas gargalhadas súbitas gostaram de mim. Como eu disse, se tornou meu amigo. Um adulto amigo de uma criança. Ele chegava em casa quando não havia ninguém, sozinho, talvez trazendo sua solidão para meu quarto. E falava e me inquiria sobre os mais diversos assuntos. Me chamava de amigo, um adulto que era amigo de uma criança, uma criança que não tinha menos do que sete anos, talvez cinco, e que só aceitava conversar comigo se estivesse no meu colo, com seu corpo como que de... brinquedo sentado sobre o meu colo. O meu colo, gente. Comecei a ter medo, eu, um idiota de 18 anos, uma cabeça esburacada, escapando ar, fazendo água, naufragando. Dava pulos com suas gargalhadas, olhava fixamente seus dentes, para seus olhos, e esse meu olhar fixo era... vocês sabem do que eu falo?, sentir que não é possível parar de olhar para algo até esse algo se tranformar em outra coisa?, em uma idéia, em um sentimento, em uma memória, e essa memória criar uma viagem estranhíssima, como a de um sonho, sem que a gente esqueça que estamos acordados pensando no fato de que estamos sonhando e no quão isso é estranho, e nesse pesadelo nosso objeto fala conosco, nos dá ordens, entendem?, e foi a partir daí que eu comecei a pensar que se sentir hipnotizado pelos olhos e pelos dentes de um menino de seis anos, ou coisa que o valha, que isso não era normal, que o menino não era normal. Isso não é normal, eu pensava. Esse menino está escondendo algo, percebem? Seu corpo esconde algo horrível, podre, há coisas dentro dele que não parecem ser o que são. E entender que alguém lhe esconde algo é o primeiro prenúncio da presença do mal, isso eu escrevi num dos meus livros, vocês podem ler, essa frase exacta. Casca olhava para o teto, as pernas apoiadas num pequeno tamborete na frente do sofá. John Pablo chupava as unhas, as costas curvadas para a frente e uma veia saltada na testa curta. Tinha medo do menino, alguém incapaz, fisicamente incapaz, digo. E temia os momentos em que ele chegaria, tinha medo do relógio e do meio da tarde e de sua bundinha esquálida, nada mais do que um envoltório de algo bem diferente do que chamamos de comum. Eu sabia que era ele que chegava pela maneira que tocava a campainha, vários toques ininterruptos, aflito para me perturbar, para me tentar, de que outra maneira posso dizer? Casca me olhou, eu olhei para o Pablo, Pablo olhou para mim e depois para o Casca, que estava olhando para ele no mesmo momento. Casca se levantou e olhou as estantes e interrompeu o velho perguntando onde estava esse livro da tal frase exata mas o velho, ainda pressionando as mãos com força, o bigode rodeado de gotículas de suor, a barriga deformada pela gordura, queria falar, fazer valer as 150 pratas que gastaria conosco, com seus jovenzitos, como dizia. Jovenzitos, meus jovens, minhas crianças, falou, com uma voz pastosa. De que outra maneira eu posso dizer? Aquele menino queria que eu fizesse coisas com ele. Quando vemos na TV a história de que um homem foi com um menino, o que pensamos? Que esse homem, sempre um ser solitário, é um monstro abjeto e degenerado, que ele manipulou um ser pouco desenvolvido para introduzir-se em seus oríficos e com isso ter um prazer simples, brutalmente simples, brutalmente covarde. Pensamos na iniquidade e na complexidade, e que deus não nos fez iníquos ou simples, e que por isso devemos respeitar sua suprema ordem divina e incorpórea da busca da justiça e da dúvida. Pensamos no sexo e na indissolúvel vontade que o envolve, e pensamos que o sexo com alguém pouco desenvolvido destrói qualquer possibilidade de escolha ou de vontade, pensamos que o sexo com crianças não é sexo, é violência pura e infinita, o Inferno. E o que dizem os malfeitores? Dizem que foram tentados, só isso, candidamente, ainda mais terríveis. Agora, com toda a humildadverdad que tenho comigo, com a minha alma, vou perguntar: e se, pelo menos uma vez, esses homens que vão com meninos tiverem razão, falarem a verdade? E se aquele tachado de repulsivo estiver seguindo ordens? E se o mal se alastrar de um, digamos, pólo ativo, mais forte, em direção a um pólo passivo, mais fraco? E se a detestável desigualdade e a odiosa manipulação for produto da criança, e se essa criança estiver preparada, for antiquíssima? E se uma criança não for uma criança?, esse é o meu ponto. Sem cinismo, sem ironia. Eu quero tentar ser completamente aberto aqui, falar de igual para igual, dizia abrindo os braços, só buscando um ponto de vista diferente, minha gente. Jonh Pablo Escobar, o rapaz feioso do bloco 1, se levantou. Eu olhei para ele, que olhava o velho, e o Ivan Cascudinho, o rei da putaria, também olhava o velho, e por isso eu também olhei o velho. Aquele menino queria que eu fosse com ele, disse o doutor, ele ria no meu colo e me apertava e dizia que éramos melhores amigos. Eu sabia. E pensei: "Se eu sei que isso é o mal, o mal já não está em mim", pensei: "Basta compreender o mal para já praticá-lo?", pensei: "Então essa é maior tentação"? Aquele menino gargalhava e se apertava no meu colo, crianças, no meu colo. Ivanzico falou Ah, tio, vai se fuder, e começou com um chute no queixo que silenciou Rodenti. Pablito, com alguma calma até, esperou sua vez e afundou seus pés calçados de sandálias no peito do homem. Eu fui mais radical e joguei, sem pensar, a garrafa de licor de laranja na testa, onde um ponto de sangue começou a escorrer, grosso e escuro. Inspirados por mim, John e Casca pegaram duas cadeiras de madeira que estavam à mão e, alternadamente, as bateram contra a cabeça e o pescoço do doutor, do velho doutor Rodenti, careca, gordo, aposentado. Nenhuma das cadeiras quebraram, e por isso eles repetiram os gestos, mirando também nos braços e nas pernas, até uma das cadeiras se partir em três. Pablo pegou um desses pedaços e me deu. Eu peguei esse pedaço e tentei enfiar com um golpe na boca do velho. Senti alguns dentes se partirem e algo mole se rasgar. Ao mesmo tempo, Ivan o tirou do sofá com um puxão. Ele caiu no chão e em torno dele se criou uma poça de sangue. Não dava para saber de onde o sangue vinha. Daí Casca deu um pulo bem alto e martelou os dois pés juntos nas costas do homem e surgiu um barulho engraçado. Eu repeti seu gesto, e o John Pablo também, e também surgiram barulhos engraçados. John tentou levantar o sofá e jogar em cima do velho, mas não conseguiu. Cascudinho tirou sua camisa e começou a chutar a cabeça de Rodenti. Eu tirei minha camisa e Escobar tirou sua camisa. Todos sem camisa, começamos a chutar diferentes partes do corpo imóvel no chão e a dar pisões em suas mãos. Peguei o telefone preto que havia na sala, me agachei e passei a batê-lo contra a cabeça, até ela se partir como uma fruta. Senti que estava batendo contra uma fruta e parei. Pablo tentava virar o joelho esquerdo ao contrário, mas não conseguia. Casca foi à cozinha e pegou uma faca de cabo de madeira. Deu a primeira estocada e parou. John pegou a faca de sua mão e deu várias estocadas e parou. Eu percebi que estava com a roupa cheia de sangue e parei. Olhamos, posso dizer, durante mais de cinco minutos o que havia no chão. Estávamos suados e com as mãos na cintura. Pegamos alguns vinis pornôs, um ou dois livros grossos, e saímos.